Juiz homenageia escritor com sentença poética
A sentença é, no mínimo, inusitada e o juiz garante que só se faz isso uma vez na vida. Porém, o texto começa a ser amplamente divulgado pela imprensa e o juiz David de Oliveira Gomes Filho, da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos de Campo Grande, está sendo muito cumprimentado.
Modesto, ele afirmou: “O processo pedia algo diferente e Drummond fez a maior parte. Eu só mudei umas palavrinhas”.
O Drummond a quem ele se refere é o famoso e eterno poeta Carlos Drummond de Andrade, que serviu de inspiração com a conhecida poesia E agora, José? Assim, o juiz David aproveitou uma contenda judicial na capital de Mato Grosso do Sul para externar sua veia poética em homenagem ao escritor sul-mato-grossense Manoel de Barros.
A demanda começou porque a Prefeitura de Campo Grande, para fazer uma homenagem ao maior poeta de MS, morto em novembro de 2014, encomendou uma estátua em bronze, sentado no sofá de sua casa, com um largo sorriso no rosto – o que lhe era peculiar. Entretanto, o Executivo Municipal decidiu instalar a arte no canteiro central da Av. Afonso Pena – principal avenida da cidade.
A Secretaria de Cultura teria dado parecer favorável ao Município, mas o Instituto de História e de Geografia de Mato Grosso do Sul deu parecer contrário à pretensão do Município, já que, naquele exato local, existe um sítio arqueológico militar, representativo de parte importante da história brasileira e sul-mato-grossense.
O Ministério Público estadual ajuizou ação para impedir que a estátua fosse colocada naquele local, sob o argumento de que o mito Manoel de Barros não se harmonizaria com a história específica do local, mas não existiria oposição do Instituto a que se instalasse a estátua no mesmo canteiro, mais acima ou mais abaixo, fora do sítio arqueológico.
Sentença – Ao começar a sentença, David pede licença aos grandes escritores para fazer diferente.
“E agora, Mané? Talvez Carlos Drummond de Andrade, no lugar deste juiz, começasse sua decisão assim: “E agora, Mané?” Evidentemente que este magistrado não tem intimidade com o querido Manoel de Barros para chamá-lo de “Mané”, mas quem sabe Drummond teria... Fico imaginando se o grande poeta permitiria uma escovação das suas palavras para tentar transformar o “E agora, José?” em “E agora, Mané?”, afinal de contas, as palavras escondiam Manoel de Barros sem cuidado e o encontravam onde ele não estava!”, escreveu David, com elegância, para garantir que a estátua não fique no sítio arqueológico.
Ele explica que as decisões jurídicas não costumam abrigar a poesia, entretanto, neste caso, ela trouxe um pouco de leveza à aridez do processo e do Direito. “É uma flor nascendo na fresta de uma pedra. Talvez seja o Efeito Manoel de Barros de fazer brotar beleza nos locais mais improváveis”, escreveu.
E agora, Mané?
A festa nem começou,
as luzes não acenderam,
o povo não chegou,
a homenagem parou,
e agora, Mané?
e agora, você?
você que quer homenageá-lo,
você que quer proteger o patrimônio histórico,
você que faz obras,
você que faz processos,
e agora, você?
A base de concreto está sem estátua,
o Mané sem homenagem,
o sítio arqueológico militar sem respeito,
o homem sem reflexão,
a mulher sem compreensão,
e a noite esfriou,
o dia não veio,
não veio a utopia,
e tudo parou,
e tudo esperou,
e tudo judicializou,
e agora, Mané?
E agora, Mané?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
sua simplicidade – e agora?
Com a caneta na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer atirar no mar,
mas o mar secou;
quer ir para casa,
casa não há mais.
Juiz, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você abandonasse...
mas você não desiste,
você enfrenta, juiz!
Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você decide, juiz!
Juiz, para onde?
Para onde as palavras mandarem...
Desfecho - Na decisão poética, o juiz David determinou que se recomponha a área preparada para receber a homenagem a Manoel de Barros ao estado anterior, no prazo de 60 dias, e autorizou que a homenagem seja prestada em outro local.
A pena para o descumprimento é de R$ 100.000,00 em favor do Fundo Municipal do Meio Ambiente, cuja utilização pelo respectivo conselho ficará condicionada às despesas de manutenção ou de recomposição do patrimônio tombado (canteiro da Av. Afonso Pena).
O Município poderá apresentar impugnação ao cumprimento de sentença em 30 dias.
Para ler a íntegra da sentença clique aqui