Mulheres falam de suas trajetórias na magistratura
Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o Diário de Justiça exibiu um pedido de anotação na ficha funcional da juíza Camila de Melo Mattioli Pereira, de Água Clara, por sua atuação jurisdicional junto à referida comarca, reduzindo significativamente a quantidade de processos em trâmite.
O pedido, feito pelo Corregedor-Geral do Ministério Público de MS, Marcos Antonio Martins Sottoriva, foi deferido pelo Conselho Superior da Magistratura. A solicitação foi simples, demonstrando respeito e reconhecimento pelo trabalho da juíza e mais: deixa clara a mudança de postura quanto ao trabalho desenvolvido pelas mulheres nos dias atuais.
Mas nem sempre foi assim. Quando ingressou na magistratura em 1988, a hoje juíza aposentada Aparecida Henrique Barbosa viveu em outra realidade, embora garanta que nunca tenha sofrido abertamente a discriminação por ser mulher. Com seu característico tom maternal, ela relata uma situação hoje engraçada.
“Eu judicava em Deodápolis e um senhor chegou ao Fórum querendo falar com o juiz. Fui atendê-lo prontamente, mas ele se recusava a falar comigo. Queria a presença do juiz. Expliquei que eu era a juíza da comarca e ele respondeu: ah! Menina, você não vai resolver o meu problema. Quero falar com o juiz”, contou sorrindo.
Aparecida nunca foi destratada na jurisdição por servidores ou advogados, mas não deixou de reparar no estranhamento causado com sua presença na execução penal quando atuava em Cassilândia, principalmente no período em que lá judicava e teve que administrar uma situação muito difícil: os presos ficaram 60 dias sem alimentação fornecida pelo Estado.
“Foi muito complicado, mas não podia ficar parada enquanto a situação se agravava. Então, fui ao supermercado e pedi aos comerciantes que ajudassem sob o argumento que a sociedade local seria beneficiada, pois o presídio era no meio da cidade, com muro baixo, parecia uma residência. No final, a comunidade manteve a alimentação por dois meses”, relatou.
A juíza contou ainda que fez uma gestão junto com a comunidade local que, além de responder pela alimentação dos presos pelos 60 dias, arrecadou verbas que possibilitaram levantar o muro da prisão para que tivesse mais de três metros de altura e construir uma guarita. “Naquele tempo, não era uma coisa muito fácil de se fazer – ainda mais por uma juíza, mas deu tudo certo”.
Aparecida não esconde o fato de ter sido uma mulher e juíza que sempre se misturou com a comunidade, o que rendeu a ela experiência de vida, em razão do contato direto com a miséria humana. O que mais a comoveu na atuação como juíza foi a fragilidade dos alimentandos, nas ações de alimento.
E para mostrar um pouco desse aspecto humano da judicatura, ela relatou uma situação que a marcou para sempre, quando o lado mulher falou mais alto em seu coração e ela, com o auxílio de uma psicóloga, conseguiu evitar um aborto: a criança ficou no ventre até o momento de nascer e foi entregue para adoção. Essa é uma das lembranças bonitas que tem do tempo em que atuava, por ter salvo vidas.
“Uma menina de 15 anos foi estuprada e engravidou e, apesar de haver amparo legal para o pedido de aborto, não tive coragem de autorizar. Sabia que ela nunca mais teria paz. Foi um trabalho fora do processo porque ganhamos a vida da criança e a mãe seguiu em frente. Nos 22 anos de judicatura, não me arrependi um dia sequer de ter escolhido a magistratura. Aposentei com o sentimento de dever cumprido”, disse.
A magistrada aposentada pondera que talvez fizesse algumas coisas diferentes porque a vida traz maturidade, mas garante que a caminhada na distribuição da justiça vale a pena. “Para uma mulher que deseja ingressar nessa carreira eu diria: persevere. Não é fácil, mas valeu muito a pena”.
Sexta mulher a compor a mais alta Corte de Justiça do Poder Judiciário sul-mato-grossense e primeira juíza a ser promovida por merecimento ao cargo de desembargadora, Elizabete Anache ingressou na magistratura no dia 1º de fevereiro de 1994. Ela conta que não sofreu qualquer tipo de retaliação ou preconceito por ser mulher, embora reconheça que desde que ingressou na carreira houve uma mudança de comportamento da sociedade.
“Eu acredito que hoje a visão é outra sim, mas nem por isso foi fácil. Realmente acho que eu seja uma exceção, pois nunca percebi nenhuma atitude de preconceito. Contudo, minha forma de agir no início da carreira era diferente: sentia que tinha que transparecer mais rigor, mais austeridade. Hoje tenho mais leveza no dia-a-dia da magistratura. Sou mais soft”, disse brincando.
A desembargadora Elizabete Anache, além das sessões de julgamento e dos processos que estão sob sua relatoria, responde pela Coordenadoria da Infância e da Juventude de MS (CIJ) e é a atual Corregedora-Geral Adjunta. Sem esconder a paixão pela profissão que escolheu, garante que a magistratura só tem dado a ela alegrias na vida, pois as tristezas passaram tão rápido que delas já não se lembra.
Sobre o tempo que judicou em primeiro grau, lembra de sua passagem pela comarca de Aquidauana com muita alegria em razão da mobilização da comunidade para construção do presídio semiaberto. “A sociedade se sensibilizou com a questão em uma reunião que fiz com as lideranças locais e, a partir de então, houve uma comunhão de esforços para a realização da obra”, completou.
Em Campo Grande, Elizabete atuou por nove anos na 1ª Vara de Família e, desse tempo, considera as audiências domiciliares com os interditandos acamados muito marcantes, também afirmando que o que mais a comovia como juíza eram as crianças acolhidas.
“O que diria para uma mulher que tem o sonho de ser juíza? Estude – simples assim. Nenhum sucesso vem sem esforço para a mulher ou para o homem. Tem que fazer por onde, com disciplina e esforço. A judicatura não é uma tarefa simples. É necessário trabalhar com presteza, qualidade e principalmente ser justo. O magistrado não consegue agradar as duas partes ao proferir uma sentença. Daí o peso da toga que enverga”, esclareceu.
No dia de sua posse, Elizabete endereçou um agradecimento especial às magistradas de MS, a quem chamou de verdadeiras fortalezas, íntegras e corajosas, capazes de enfrentar todos os desafios que lhes são postos. “Passarei por este caminho somente uma vez, portanto todo o bem que eu puder fazer, devo fazê-lo agora. Não devo adiá-lo nem negligenciá-lo, pois não passarei por este caminho novamente”, finalizou.